Na oficina Mapeando os Engenhos de Farinha, realizada no último sábado (28 de julho) no Sertão do Ribeirão, moradoras e moradores trouxeram lembranças e informações sobre a presença dos engenhos de farinha de mandioca no Sul da Ilha de Santa Catarina. A atividade
integra projetos do Cepagro apoiados pelo edital Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura e também pela Secretaria de Estado de Cultura, Esporte, Lazer e Turismo (SOL) para a produção de um Mapa Cultural dos Engenhos de Farinha e também para o Inventário Cultural dos Engenhos de Santa Catarina. Durante a oficina, foram discutidos também os desafios para a manutenção da produção artesanal de farinha em Florianópolis.
A ausência massiva das crianças nas aulas durante os meses de junho, julho e agosto – correspondentes à temporada das farinhadas – levou a professora Almerinda Catarina Scotti de Souza, ainda na década de 70, a cogitar mudanças no calendário letivo na escola do Sertão do Ribeirão, onde lecionava. “Ninguém vinha pra aula, só queriam ir fazer farinha”, recorda Almerinda, hoje presidente da Associação de Moradores da comunidade. Uma de suas estudantes era Luzia Ramos dos Santos, que ainda lembra das brincadeiras misturadas à lida no engenho do pai. “A gente começava de madrugada e ia até à noite, às vezes pegava no sono dentro dos balaios mesmo. Meu pai me levava de volta pra casa nos ombros, eu olhava pro céu e pensava que a lua caminhava com a gente”, recorda Luzia, que hoje trabalha como cozinheira escolar. Almerinda, Luzia e mais 20 pessoas do Sertão do Ribeirão, Campeche e Ribeirão da Ilha compartilharam estas e outras lembranças e conhecimentos sobre os engenhos de farinha no sul da Ilha de Santa Catarina durante a oficina Mapeando Engenhos de Farinha, realizada no último sábado no Sertão do Ribeirão. O objetivo da oficina era identificar e mapear os engenhos e roças de mandioca na região sul da Ilha, além de fazer um levantamento dos bens culturais ligados aos engenhos: o que aquelas famílias consideravam que era mais importante nos engenhos?

Luzia Ramos dos Santos e a mãe, Cecília, guardam os artefatos do tempo da produção artesanal de farinha.
Enquanto o discurso hegemônico coloca os engenhos somente como lugares de memória, a oficina identificou 5 unidades produtivas e ativas no Sertão do Ribeirão, Campeche, Rio Tavares e Ribeirão da Ilha. Além destes, 2 engenhos do Sertão do Ribeirão foram desativados recentemente, mas seguem montados. O principal obstáculo para a produção de farinha? Segundo os participantes da oficina, é a obtenção da matéria-prima: a mandioca. “A gente tem vontade, mas não tem o direito de trabalhar. Tenho engenho, mas não posso fazer roça. Me falam pra plantar num lugar, mas eu quero plantar onde eu sei que vai dar”, afirma Apolinário Vergílio Soares, agricultor do Sertão do Ribeirão e dono de um engenho desativado há 3 anos. Como sua propriedade está dentro de uma Unidade de Conservação – o Parque Municipal da Lagoa do Peri -, Apolinário não pode abrir áreas de roça para plantar mandioca, o que inviabiliza a sua produção de farinha se ele não tiver condições de trazer mandioca de fora. Outro “engenheiro” do Sertão do Ribeirão é Manoel Domingos de Souza, o Neca, que traz mandioca do Canto da Lagoa e de outros bairros para fazer farinha. “Até quando vou fazer eu não sei, enquanto tiver vontade de trabalhar acho que vai”, afirma o agricultor e mestre-forneiro. “Como vamos manter a tradição? Vou plantar mandioca onde, no mar? Comprar mandioca na Garopaba com veneno pra fazer farinha?”, questiona Manoel Jesus da Natividade, outro Neca, morador da Costeira do Ribeirão e também remanescente da produção artesanal de farinha.

Jacob Heindeinreich (às esquerda), com Daura e Manoel Domingos de Souza, guardiões da produção artesanal de farinha em Florianópolis.
Às restrições para abertura de áreas de roça – que também usavam muito as encostas de morro, hoje Áreas de Preservação Permanente -, soma-se também a falta de mão-de-obra para cultivar e processar a mandioca. Ainda assim, entre vizinhos sempre chega alguém para ajudar, como Osvaldina Maria Barcelos, que cresceu em engenhos e hoje ajuda Neca durante as farinhadas: “Quando chega o tempo de fazer farinha, é o que a gente mais gosta de fazer”, conta Dina. “Se não tiver ninguém pra ajudar, não dá pra fazer. Se vier 10 pessoas e ficar só conversando, não sai farinha. Tem que vir pra ajudar”, explica Neca. “No engenho de farinha tudo é importante. Começa pela raspagem. Raspou, tem que levar pro ralador. Do ralador pra prensa. Seca num dia, vai pra peneira e forno no outro. É uma sequência. Todos trabalham, mulher e homem”, explica Jacob Heideinreich, de 93 anos, dono de um engenho em funcionamento no Ribeirão da Ilha. Apesar de todos estes desafios, ele e o filho João seguem cultivando mandioca no próprio terreno e fazendo farinha, assim como Neca e outros engenheiros do Campeche e Rio Tavares.
Em termos numéricos, o declínio dos engenhos de farinha é visível na Ilha de Santa Catarina. Luzia Ramos dos Santos fez um levantamento junto com sua mãe, Cecília Ramos dos Santos, de 83 anos, que mostra que em 1940 eram 22 engenhos ativos

Cecília Ramos dos Santos (ao centro) e Yolanda Heideinreich (à esquerda) compartilharam memórias e informações sobre os engenhos
só no Sertão do Ribeirão. Em 1974, quando Luzia era criança, o número havia caído para 18. Hoje, só os Necas (Domingos de Souza e Jesus da Natividade) segue fazendo farinha ali. Por outro lado, há um movimento de adquirir engenhos desativados para fazê-los funcionar novamente. Um dos mais interessados é Ataíde Silva, coordenador da Horta Comunitária e Pedagógica do PACUCA, no Campeche. “Queremos um parque com nossas raízes: gado, roça de mandioca e aipim e engenho, pra passar pras novas gerações”, afirma Ataíde, que identificou 2 engenhos em funcionamento no Campeche. Além disso, colocou a área da Horta Comunitária à disposição para quem quisesse fazer sua roça de mandioca ali. “No Campeche tem terra pra plantar, mas não tem plantador. É terra de areia, é tudo que o aipim e mandioca gostam”, completa.
A fala de Ataíde e outras mostram como a mobilização e o (re)encantamento das juventudes para com a lida dos engenhos é fundamental para a conservação deste patrimônio cultural e agroalimentar. A promoção de oficinas práticas e atividades com escolas foram apontadas pelos participantes como algumas estratégias para manter os engenhos vivos. Foi apontado também que seria importante restringir a venda separada de peças de engenho como artigos decorativos, tendência que vem crescendo em Santa Catarina. Além disso, o diálogo com o Poder Público para a preservação dos engenhos (e da produção de mandioca) no Plano de Manejo das Unidades de conservação foi outro encaminhamento considerado prioritário.
Enquanto isso, a produção artesanal de farinha de mandioca segue resistindo na Ilha de Santa Catarina. Nesta semana, Jacob e João, por exemplo, estão na segunda forneada da temporada, no Ribeirão da Ilha, mantendo vivos os saberes e as práticas que fazem dos engenhos patrimônio cultural de Santa Catarina.
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