por Gabriella Pieroni;fotos de Fernando Angeoletto e Mariana Rotili
Tradição, dizer através do tempo
Este fim de semana o engenho da Costa da Lagoa girou! Movido pela comunidade e visitantes que compareceram para criarem juntos o ritual da Farinhada, trabalho familiar que se transforma em expressão cultural.
Roça de mandioca não há mais,pois as leis ambientais não permitem o tradicional plantio, a protagonista da festa já não desce o morro em carros de boi mas chega pela lagoa nas embarcações dos barqueiros.Boi só o de mamão e de papelão, mas pra girar a cangalha não falta gente, remontando a tração humana, principal brincadeira da festança. O silêncio do trabalho agora é rompido pela euforia da festa,que a cada ano está ficando mais animada.
A maior festa da história do engenho
Depois de uma semana de mutirões de limpeza do espaço e organização da festa, o engenho começou a rodar na sexta-feira a tarde com as etapas de raspagem do capote (casca fina da mandioca), seva (onde a raíz é ralada) e prensa no tipiti (desidratação). No domingo, dia mais movimentado da festa, foi feita a peneiração e o forneio da farinha, etapa mais trabalhosa e também mais bonita do processo. Este ano o engenho recebeu seu maior público da história,mais de 200 pessoas que se revezavam entre a cangalha (peça que gira a roda que era tocado pelo boi) as rodas de conversa e atrações culturais. O boi-de-mamão da escola local ampliou o clima de brincadeira com seus cantos, batuques e adereços. A performance grupo encontrou seu lugar ideal na fachada do engenho que servia como cenário para a narrativa do folguedo.
Uma feijoada ilhéu (com carnes e verduras) foi servida no almoço para a apreciação do pirão de feijão com farinha recém saída do forno. Um grupo de 10 chefs de cozinha do Convivium Mata Atlãntica, que vieram desde Blumenau especialmente para a Farinhada, acompanhava atentamente a fabricação da farinha. Barraquinhas com comes e bebes foram montadas pela família festeira e moradores dos arredores. O artista plástico e morador da vila, Paulo Burani, fez uma exposição de suas pinturas que retratam a cultura náutica na paisagem da Costa da Lagoa. Fotografias de Giliard Orionita também podiam ser vistas nas paredes do engenho. Quando a noite chegou, o grupo Norte e Sul composto por Dú de Canário e Paulinho da Vassoura, um gaúcho e outro potiguar, convidou o público para dançar ritmos brasileiros e composições próprias. Os músicos e moradores da Vila Verde são os tradicionais cantadores da Farinhada e desta vez, levantaram poeira do chão batido entre uma fornada e outra de farinha.
O Ponto de Cultura fez a entrega das louças produzidas especialmente pelo ceramista Renato Trivella para o engenho, o ceramista apresentou as peças que foram imediatamente utilizadas na festa.
Todas as etapas do fim de semana foram feitas coletivamente pelos moradores da Vila Verde (ponto 8 da barca) e coordenadas pela família Ramos, antiga proprietária deste engenho, que ainda detém os saberes tradicionais do feitio: técnicas e sensibilidades que tornam possível a fabricação da farinha atualmente. A família também é a atual gestora da festa,assumindo a função nos últimos 4 anos.
A Farinhada da Costa da lagoa é umas das festas tradicionais da ilha que mais integra pessoas não nascidas na cidade. Estas pessoas se tornam não apenas consumidoras, mas também produtoras da festa, reforçando a identificação com o espaço e evitando conflitos identitários. Desta maneira,todos têm a oportunidade de contribuir com a celebração cultural do alimento,que tem uma motivação universal. O fenômeno, ao contrário do que se diz por aí,em vez de descaracterizar, deu vida à tradição na Costa da Lagoa e a todo o arcabouço histórico nela contida, além da bonita função de unir as pessoas.
O Engenho da Vila Verde : espaço cultural de autogestão
O feitio artesanal da farinha ganhou novos significados na Costa da Lagoa nos últimos anos 15 anos, desde a revitalização deste engenho que é único remanescente em funcionamento na bacia da lagoa. Com a gradual recuperação do terreno e edificação promovida pela Associação Engenho foi possível iniciar uma ocupação diferente do espaço que se transformou num centro cultural. Desde então o engenho da Vila Verde acolhe iniciativas culturais, projetos e a Festa da Farinha, que ocorre todo ano no mês de agosto. O espaço já passou por diversas gestões, de 2004 a 2009 foi sede do Projeto de extensão da UDESC – Rodando o Engenho-Rodas de História na Costa da Lagoa, em 2008 se transformou em “set” de cinema onde foi rodado parte do filme “A Antropóloga” e atualmente é um dos engenhos da rede do PONTO DE CULTURA ENGENHOS DE FARINHA, apoio cultural na edição deste ano da Farinhada.
Apesar destas ações e de fazer parte da paisagem cultural do “Caminho da Costa da Lagoa” tombado pelo IPUF , a sobrevivência deste engenho ainda se encontra ameaçada, pois as políticas públicas são frágeis e passageiras. A manutenção da edificação é constante e despesas com contas e impostos também. A Associação Engenho se encontra atualmente inativa por falta de recursos humanos e materiais. Mas mesmo assim a festa continua, fruto da autogestão da comunidade e grande apoio de artistas, pesquisadores ou apenas apaixonados pela história do local.
O Ponto de Cultura está iniciando uma campanha ( junto com a Rede dos Engenhos Artesanais de Farinha da grande Florianópolis e entidades parceiras ) que busca construir um inventário para o reconhecimento do ritual e sistema agrícola da Farinhada ( Farinha Polvilhada) como Patrimônio Nacional Imaterial. Tal reconhecimento tem precedentes recentes com os engenhos do Pará e são ações ainda incipientes do IPHAN no país para a salvaguarda das diversidades culturais regionais e agrobiodiversidade.